O episódio ao qual quero
referir-me é sobre o comportamento de uma autoridade do Judiciário, que veio a
público há poucas semanas. Se o participante fosse alguém da chamada “classe
política”, por certo não causaria muita surpresa e talvez nem chamasse muito a
atenção porque, ultimamente, o “esporte preferido” de grande parte dos veículos
de imprensa do País tem sido o de bater em ocupantes de cargos eletivos,
mormente os de situação, no âmbito nacional. Isso com, ou sem razão,
ressalve-se.
Aqui vacilo, buscando
um termo que sintetize a atitude que, no meu entender, acabou, talvez, causando
algum estrago na imagem de uma corporação que deveria ser um modelo de
comportamento a ser seguido. Opto por
reconhecer que a atitude tomada por um senhor juiz em uma barreira de trânsito
pode muito bem ser enquadrada no termo “carteiraço” o que é facilmente
entendido por todos. Sua Excelência, com isso, passou a ser “vítima” de uma servidora pública enquadrada em “abuso
de poder” por tentar cumprir com seu dever de ofício. Não creio que o fato
gerador da sanção que sofreu tenha sido uma mera expressão que teria sido
emitida pela funcionária.
Abro um parêntese. Do
que tenho lido sobre o assunto, julgo que quem melhor conseguiu resumir essa
triste passagem de autoritarismo foi nosso mais novo imortal, Zuenir Ventura,
que, numa frase antológica, diz: “Nele (o episódio), Deus não aparece ou
aparece disfarçado, mas é evocado e confundido com um juiz” (Jornal O Globo,
8.11.14). Fecho parêntese.
Bem, até aí tudo
normal. O carteiraço é uma instituição nacional reconhecida como benéfica para
quem a utiliza e maléfica para quem sofre seus efeitos. Sua avaliação depende
da posição em que se encontram seus protagonistas. Ela é praticada por
indivíduos pertencentes aos mais diversos segmentos sociais. É usada até por
quem, eventualmente, não tem uma posição que possa utilizar a malandragem. Às
vezes com igual sucesso. Para quem se julga mais importante do que seu
semelhante, o objeto da humilhação é, na verdade, uma pessoa de menor valor e
certamente precisa “ser colocada em seu devido lugar”. Há quem diga que esse
tipo de preconceito remonta aos tempos da nefasta escravidão que manchou a
história deste País. Está, portanto, consagrada em nossa cultura.
Desculpem os
leitores, mas, depois dessa introdução o que quero mesmo é registrar minha
preocupação com o que considero o mais grave dessa situação. Refiro-me ao fato
de que o “inventor” dessa estupidez autoritária foi consagrado por seus pares
do Judiciário quando foi aplicada uma sanção pecuniária à servidora que cumpria
seu dever. Isto significa que, se o
autor for vitorioso até o final da querela, provavelmente a ser definida pela
mais alta Corte da Justiça apropriada para dirimir a questão, a própria
instituição estará consagrando a atitude de Sua Excelência como correta e,
portanto, quem abusou da autoridade foi realmente a funcionária ao interpelar
um membro do Judiciário que não portava os documentos que os demais cidadãos
comuns precisam ter consigo quando conduzem um veículo automotor. Parece-me que
isso seria abrir um precedente para que outras tantas “autoridades” possam
utilizar o tradicional carteiraço sem qualquer risco de sofrerem reprimenda de
suas corporações.
Vou mais longe ainda:
se todas as corporações se movimentarem em torno de privilégios vai ser
necessário elaborar-se listagens daqueles que estiverem isentos de punições e imagino que poderiam ser incluídas outras
profissões nesse rol, como jornalistas, médicos, parlamentares, etc. Qualquer ação do servidor nesse tipo de
atividade ficará, então, sujeita à censura dos deuses que, eventualmente,
estejam dirigindo um automóvel quer a serviço ou em merecido lazer. Sugiro,
também, que, antes de qualquer providência, o funcionário de serviço, ao
constatar uma infração, formule uma pergunta que pode passar a ser freqüente:
“Qual é sua profissão”. Assim pouparíamos tempo e dinheiro para o Estado e
algum vexame e sanção para o servidor, é claro.