quarta-feira, 15 de novembro de 2017

VIDA DE CACHORRO - II


 Como em todas as manhãs que Deus colocava no mundo, eles desceram no colo de sua dona, moradora do quarto andar daquela torre de luxo, localizado em um condomínio com jardins florescentes e bem cuidados. Era a rotina deles. Não que gostassem tanto, mas, ao menos, folgavam um pouco de ficarem deslizando nos parquês e nas lajotas do luxuoso apartamento de sua dona que não lhes dava folga com carinhos e apertos sufocantes. Eles eram um casal daqueles pequeninos e de nariz chato, penteados/descabelados para frente que quase não os deixavam enxergar. Aliás, casal é modo de dizer porque os dois eram castrados.

 No térreo, saíram, portanto, do elevador quando se ouviu certa confusão de vozes e reclamações irritadas mas contidas – como convém a pessoas educadas e finas -. Alguma coisa havia que não era claramente explicada e mencionada entre os moradores que deixavam o ascensor lotado. Alguma regra de boa educação em grupo havia sido rompida.


 Os dois, já no chão, ele virou-se para ela e perguntou naquela linguagem que só cachorro conhece: “Viste a confusão que fiz lá?” Ela estranhou a pergunta, mas já sabia que ele gostava de aprontar alguma coisa sempre que pudesse, mas retrucou: “O que tens que a ver com aquilo?” Ele, com seu sorriso canino de maroto, respondeu: “Eu peidei dentro do elevador”.  E seguiu, bem tranquilo, farejando o canteiro como todos os dias fazia.