(Quando estive em
Jaguarão, no início de março, tomei conhecimento da mutilação de árvores que
está ocorrendo na cidade. Aliás, um mau hábito que ocorre também em outros
municípios com igual prejuízo para a natureza. Coloquei-me no lugar de um
desses vegetais e imaginei o que ele poderia estar pensando. A seguir, o
resultado da minha intuição).
“Primeiro eles
cuidaram da minha semente. Fizeram-me nascer; acalentaram meu crescimento com a
energia e a água que necessitei para meus primeiros anos de vida. Aos poucos,
fui-me transformando, dispensando maiores cuidados dos homens porque a própria
natureza que me idealizou providenciava tudo: a chuva que matava minha sede e
molhava a terra em meu redor, e o sol que alimentava os microorganismos para
que eles pudessem prosperar e contribuir para que eu pudesse festejar a magia
da criação.
A vida em mim
vicejava com perfeição. Comecei a tornar-me adulta e a receber, então, os
primeiros ninhos de alguns pássaros que foram os primeiros a descobrir que meus
galhos já eram suficientes para sustentá-los. Contribui, então, para que eles
também multiplicassem a vida animal para complementar a alegria dos homens. Antes
disso, é claro, foi aqui, também, que os machos exibiram suas plumas e
trinados, querendo impressionar suas conquistas para o acasalamento, visando
prolongar a vida. Também alguns homens, cansados da dura lida diária, usaram a
minha sombra, em merecido lazer. Muitos dele suados, pelo trabalho pesado em
busca de sustento, receberam o frescor de minhas folhas para revigorarem suas forças
e prosseguirem em sua jornada. As minhas flores poderiam não ser as mais belas,
mas contribuíram também para a propagação não apenas da minha espécie como,
também, para alimentar muitos insetos que partilham do equilíbrio que sustenta
o sistema e possibilita a vida no planeta.
Isso tudo foi até ontem.
Hoje, alguém chegou comandando outros humanos e, com grande barulho de máquinas
destruidoras foram, simplesmente, ceifando meu caule, meu tronco, meus galhos. Ainda
pude ver meus pedaços levantando poeira ao encontrarem a terra. Parte de minha
vida se estiolando a céu aberto sem merecer a menor compaixão. Sei que o
destino natural da árvore é servir para alguma finalidade e para isso são
abatidas. Algumas se destinam a transformar-se em papel, que vai transmitir a
cultura; outras servirão de abrigo ou irão aquecer corpos necessitados de
calor. Outras, ainda, serão barco, que permitirá ao pescador alimentar sua
família. Não é contra isso que me estou rebelando. Não consigo entender porque
os homens que estiveram aqui não me abateram; apenas me mutilaram. Tiraram-me
os galhos e parte do tronco. Derrubaram minhas folhas e minhas flores pelo
chão. Agora não posso mais abrigar pássaros; não posso oferecer sombra aos
viajantes; não tenho mais seiva para as abelhas fazerem seu mel. A partir
daqui, vou ter que recomeçar minha vida que agora se apequena pela transgressão
humana.
Eles não me tiraram a
vida para que eu não pudesse cumprir uma de minhas finalidades. Fizeram comigo
o que de pior se pode também fazer a outros homens: tentam tirar-me a
finalidade para a qual existo.”
(Publicado no Jornal
Fronteira Meridional/Jaguarão – 18.06.15)