Ainda é madrugada na
capital dos gaúchos. Reina um relativo silêncio no centro histórico que habito
e onde, agora, tento completar meu período de repouso. De repente, assim como
num passe de mágica, uma parte da natureza se rebela com os monstros de ferro e cimento que povoam esta nesga de terra
cultuada por nossos ancestrais outrora coberta apenas de densa vegetação
nativa. Uma manifestação melodiosa de um anônimo sabiá invade os apartamentos,
atravessando as vidraças, vindo de algum lugar lá embaixo, onde a vista não
alcança.
Na cidade, a vida
quotidiana recém começa a estabelecer suas primeiras rotinas. Os cidadãos do
bem recém despertaram; os do mal talvez ainda nem tenham repousado. A vida
urbana retorna ao mesmo ciclo que encerrou ontem à noite.
Aqui, na
semi-escuridão quase silenciosa de meu quarto, sou capaz de voltar no tempo
revendo seus iguais que saltitavam libertos e felizes, exibindo o garbo
matreiro próprio da espécie nos caminhos forrados de grama em busca de sua
ração diária.
O que ouço são apenas
algumas notas musicais. Por enquanto há somente a solidão da noite que se esvai
em busca de sol. É apenas um pássaro quase comum das poucas matas que ainda nos
restam, mas reparem no significado deste som para um urbano limitado em uma
grande caixa de concreto junto a tantas outras também encurraladas por
impedimentos que eles mesmos criaram para si. É apenas um sabiá que, sem se
personificar, apenas se anuncia pelo que tem de mais belo em seu viver: seu
canto mavioso e envolvente, consolador e plangente, que acaba ferindo o
sentimento de quem o escuta com atenção. Não há como não reparar.
As árvores são tão
poucas por aqui, que me é mais fácil imaginá-lo pousado em um contêiner ou
talvez na carcaça de um automóvel abandonado em uma viela qualquer das
proximidades. Ou - quem sabe? – em uma daquelas résteas de praça espremidas
entre gigantes de circulação que, de um
momento para outro, fica lotada de pequenos monstrinhos barulhentos e bebedores
de combustível que emporcalham o ar que precisamos para respirar.
A natureza se rebela
em parte porque estamos acabando com os poros da terra. Acho que o homem também
vai acabar se transformando também em um ser sem poros, como tem desenvolvido
seus agrupamentos urbanos. Com uma alma sem poros, não há também sentimentos e
passam a ocorrer episódios não só como aqueles que resultaram na morte de um menino – tão anunciada pela
mídia - mas muitos mais que são sacrificados diariamente pela cobiça e a
vaidade de alguns poucos que conseguem transformar o mundo em um lugar
impróprio para a beleza e a vida.
Voltando ao sabiá
depois das digressões. Encerro sem conseguir desfazer uma dúvida atroz que
permeia minha exposição. O sabiá do asfalto saltitará livre em busca de
uma companheira a quem dedicará seu canto maravilhoso? Ou estará enjaulado,
vítima de algum sádico que se deleita vendo seu lamento através das grades?
Confesso que não sei. Vou continuar buscando localizar o meu despertador
melódico. Espero que a resposta seja a melhor para o caso. Afinal, o dia já
está quase começando novamente e, provavelmente, vou esquecer-me dele,
envolvido que vou estar com outras questões que
podem não ter a mesma importância do que valorizar pequenas
coisas, como esta. Só espero que ele, mesmo sem saber, volte a trazer-me mais
alguns momentos de encanto como os desta madrugada.
Wenceslau Gonçalves
Porto Alegre, set. 2015
Parece que as nossas matas
ResponderExcluirjá deixaram de ser nativas,
se a poluição expulsa e transforma
seus habitantes em refugiados
do conforto urbano.