sexta-feira, 25 de maio de 2012

"Da gaveta"

                                               O MESTRE-SALA CHOROU (continuação)


  Quando passam defronte ao mercado, asa figueiras iluminadas para a festa de momo parecem animar os foliões. Ali a 27 já estava entupida de gente. A avenida iluminada parecia também acompanhar o entusiasmo dos que acreditavam na vitória. A força dos braços agora é aplicada mais intensamente.

  Ao chegar na esquina do Largo da Bandeira, a Escola toda renova suas energias. A poucos metros do palanque oficial, onde as autoridades e a elite está a postos para  ver se a expectativa  confirma o que se ouvia nos lugares mais frequentados, como no Café do Comércio. Na cidade, se diz a boca cheia que desta vez a Escola por fim se reencontraria com seu título de campeã, superando sua tradicional adversária. Para o mais importante momento da avaliação dois mil olhos da Comissão Julgadora, a Escola reúne todos seus esforços. A bateria é um único braço na malhação dos tambores. O puxador retoma sua cantoria e repete, a plenos pulmões, o estribilho que poderia ser um hino daquele grupo.

                                                    "Nós somos os filhos da terra,
                                                      herdeiros desta nação..."

  Agora a Escola se encontra em frente ao palanque oficial. Ali estão o Prefeito, o juiz, o delegado, o comandante do Regimento e o Presidente da Câmara, além de outras tantas autoridades e convidados especiais. As pessoas estão em suas roupas leves, algumas coloridas como convém nos dias de carnaval. Os membros da Comissão Julgadora também se encontram lá e, por certo, cuidam de cada detalhe para poderem melhor defenderem a nota que vão atribuir às concorrentes. O locutor da Rádio anuncia com voz empostada e clara: "Agora pedimos aplausos para a Escola de Samba Herdeiros da Tradição, uma das mais premiadas da nossa cidade que, neste ano, se apresenta com o tema-enredo Filhos da Terra e disputa o primeiro lugar com sua rival 24 de Agosto, que já vem se sagrando campeã nos últimos dez anos." Gritos de entusiasmo percorrem a multidão e rompe em aplausos. A bateria aumenta a intensidade e a cozinha capricha mais no ritmo. Entre os componentes há um clima de alegria reprimida pela gravidade do momento, mas explicável pela certeza da vitória.

  O mestre-sala se excede em seu esforço e supera suas próprias qualidades já demonstrada em outros carnavais. Naquele momento quer mostrar muito mais do que seu preparo para aquela tarefa tão importante. Quer ser a estrela da festa. Não se importa que seus companheiros também estejam competindo. Só ele está no palco da rua. A porta-estandarte é somente um ponto de referência. Suas cores apenas estão servindo como lâmpada para que a mariposa possa demonstrar seu destino de dona da noite. No minúsculo intervalo para troca de ritmo, a porta-estandarte continua a fazer os gestos mudos que deveriam acompanhar o som que vem da bateria. No breve silêncio, ele gesticula em torno da companheira que hesita por segundos entre acompanhar o ritmo do porta-estandarte ou quedar-se na quietude passageira, apenas mexendo os quadris ao embalo do rufar dos repiniques que agora retornam com toda pureza, marcando o compasso do samba-enredo. Ao mestre-sala parece que a vitória depende apenas de seu empenho. Se ele falhar, toda a Escola perderá a chance de vencer.

  O mestre-sala não distingue nada a sua frente. Vê, apenas, as cores rodando e ouve o ritmo cadenciado do samba que ensaiou inúmeras vezes. A porta-estandarte agora é apenas uma imagem que baila e rodopia e, às vezes, flutua como uma nuvem azul em tarde de abril. Naquele momento, no mundo inteiro existe apenas a avenida com sua vida efêmera e fantasiosa. Para ele não há nenhuma vida além de seu compromisso. Nem a sua própria que, agora, pertence à música que inebria seu sangue e o faz mover-se com graça e força. Tem tanta certeza da vitória que já se sente beijando a taça molhada em lágrimas.

  Agora que nada mais pode ser feito, o mestre-sala segue seu instinto mais forte. Sai apressado do quarto sem apagar a luz. Tropeça numa cadeira quando vai pegar a cartola na sala. Sai para a rua e fecha a porta com cuidado, como se temesse despertar alguém, e mergulha na noite.

  E, conforme ele havia previsto, toda a Escola, ao receber o resultado, chora de alegria. O mestre-sala também. Misturando lágrimas de tristeza e alegria.

                                                                         (Wenceslau Gonçalves/Laguna dos Patos, 2006)

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