domingo, 20 de maio de 2012

"Da gaveta"

                                                           O  MESTRE-SALA  CHOROU (I)

 Primeiro o repinique marcando o samba-enredo soberano no comando da Escola; depois o surdo e os taróis reforçando o ritmo. Seguiram a caixa e o tamborim. Por fim o reco-reco e a cuica assumem seu papel para completarem a melodia que arrebenta qualquer coração. O som encorpado da bateria agita a assistência que acompanha os sambistas, batendo com os pés na calçada. A avenida iluminada, agora pintada também pelas mil cores de todas as tonalidades das fantasias parecem cair em cascata, inundando o calçamento. A multidão vibra e não economiza aplausos. O mestre-sala sarandeia na pista companhando, com rara maestria, todos os movimentos da porta-estandarte. Ela, na sua majestade, é a mais linda de todas as cabrochas da Escola. Com um sorriso nos lábios e a pele brilhando de suor e lamê, encanta quem vê seu requebro e a agilidade de suas pernas esguias que acompanham a cadência do samba.

 O mestre-sala imerso em seu devaneio vibra com o sucesso da sua Escola. Mas é apenas um sonho. Por enquanto ele está na semiescuridão de um quarto pequeno e pobre com pouco mobiliário. Apenas uma velha cama de casal, um roupeiro já passado pelo tempo e uma mesa de luz onde há um pequeno abajur cuja luz mortiça apenas ajuda a tornar o ambiente ainda mais entristecido. Um compo com chá, ainda pela metade, revela uma vã tentativa de debelar uma doença. Na parede, um quadro de Coração de Jesus, tirado de uma folhinha e colado em um pedaço de papelão, mostra que as pessoas daquela casa acreditam no sobrenatural. Na cama, uma pessoa já muito velha agoniza. É pouco mais que um pequeno sinal debaixo dos lençois cobertos por uma colcha de retalhos multicores. Uma estante de madeira escura com a pintura já descascando cobre parte de uma parede lateral e abriga uma pequena capelinha onde uma vela acesa homenageia Nossa Senhora e pede que ela interceda pela dona da casa. Um penico branco, embaixo da cama, completa o ambiente. A janela que dá para a rua e se encontra fechada, está coberta por uma cortina de chitão encardida.

 O mestre-sala é pura incerteza. Há momentos em que encontra todos os motivos para abandonar seu posto porque considera seu compromisso acima de qualquer coisa. Seu amor à escola de seu coração, mais do que, eventualmente, dedica ao seu time azul-e-branco da cidade, justificaria qualquer atitude. Afinal, ele pensa, não será este ato que poderá mudar a situação aqui, mas sua ausência lá certamente vai comprometer todo o esforço dos seus companheiros.

 O mestre-sala lembra que é o momento esperando durante todo o ano. Tudo volta agora: os ensaios após o trabalho, varando a madrugada, o cansaço e a esperança que irão por águas abaixo se ele falhar. A sua tristeza será compensada pela alegria deles. A nossa vitória borrará todas as tristezas. Ele explodirão a frustração reprimida de dez anos perdendo. As cores da Escola vão brilhar na noite e haverá choro de alegria. Alguns compreenderão qualquer das suas decisões; outros não aceitarão nenhuma delas.

 Agora o mestre-sala chora em silêncio. As lágrimas molham a fantasia fezendo mais forte o vermelho da bata colorida. A cartola preta, trazida na noite anterior para casa, onde ainda repousa na sala contígua, em cima da mesa junto a um vaso com flores artificiais depois de ter sido lustrada com todo capricho por uma prima também da Escola.

 Em seu ritmo de cadência perfeita num crescendo, a Escola sai de sua sede, localizada na Av. 20 de Setembro, que margeia o rio, nas proximidades da velha caixa d`água em desuso há muitos anos. Vai em direção à praça 13 de Maio, onde está sendo realizado o desfile e sua rival ainda está terminando sua apresentação. O puxador de samba reforça sua cantoria do samba-enredo, na qual o refrão se destaca:
                                                           "Nós somos os filhos da terra
                                                             herdeiros desta nação..."

 A pisada firme dos pés revestidos de conga barata dos componentes da Escolas marca o compasso do samba-enredo e reflete a disposição do grupo em conquistar o título tão ambicionado que, desta vez, está presente no sonho de todos.
                                                                                                           (continua)

Nenhum comentário:

Postar um comentário