domingo, 21 de agosto de 2011

O Q U I L E R O (II - final)

 A filha, uma mulata faceira e linda, cobiçada até por branco de importância, que fazia bonito em qualquer festa, havia sido o orgulho do casal. Acabou vindo mais cedo para o povo a convite de uma madrinha que vivia na cidade. Não demorou muito para que a moça criada na campanha caísse na conversa do primeiro namorado. Embarrigou, seduzida pelo malandro pelo qual se enrabixou, mas que não queria nada com o trabalho. Logo que a criança nasceu, o ajuntamento não durou muito e o neto foi morar com os avós. "Ela continua aí, na mão de um e de outro e vivendo a vida que não merece ser vivida", costumava dizer Nico, cheio de mágoa, quando perguntavam por ela. Hoje, pode ser encontrada em uma dessas pensões de mulheres da zona e atende pelo nome de guerra de Mima.

 De vez em quando ela aparece para ver o filho e leva um brinquedo ou alguma gulodice. No início, bem que a criança reclamava a presença da mãe, mas, com o tempo, acabou se acostumando àquelas visitas esporádicas. Agora já nem pergunta mais, apenas deixa-se acariciar, meio sem jeito, quando a mãe o chama para perto nas poucas oportunidades em que ela aparece em casa.

 O guri é o dengo dos velhos. Menino esperto de nascença. Mal tinha seis anos e já começara escrever algumas palavras. Hoje, com oito anos, frequentando o segundo ano primário, já chama a atenção dos avós quando eles falam alguma palavra muito errada. Esse menino, sim, vai ser a esperança da família. É capaz até de dar pra doutor um dia porque nunca haviam visto uma criança tão inteligente e educada. "Os modos, então, são de gente grande. Tem sempre a roupa limpinha e nunca se rebela quando não lhe fazem as vontades", diz dona Noca, com orgulho.

 Com a idade em que os velhos da cidade já estão em casa ganhando o salário mínimo do INPS, o seu Nico não sabe mais como ganhar a vida. Aqui não tem emprego para quem só sabe lidar com bicho do campo.

 Lá pelas tantas, quando já estavam acabando os pilas recebidos pela venda da vaca e do terneiro, seu Osvaldo do mercadinho deu-lhe a idéia. Ele mesmo precisava de alguém que fizesse aquele serviço, principalmente agora que o peso estava baixo e havia muita coisa barata do outro lado da ponte.

 Saiu dali pensando que nunca teria coragem de fazer aquele trabalho. "Nunca fui homem de andar no caminho errado. Sempre procurei ser respeitador das leis que os doutores fizeram. Eles estudaram tanto e sabem mais do que eu, que sou um pobre velho analfabeto". Chegou em casa e, enquanto dona Noca terminava de aprontar a janta, ele contou, entre um mate e outro, o que havia conversado com o bolicheiro. Ela achou que não estavam em condições de escolher o que fazer e estava começando a faltar comida. No dia seguinte, ele passou a ser mais um quilero  na Ponte Mauá.

 Em Rio Branco, graças às indicações do seu Osvaldo, ele procurou as pulperias onde pudesse encontrar as mercadorias mais baratas para revenda. Isto servia, também, para ele ir, aos poucos, arriscando a falar algumas palavras em castelhano que ia aprendendo no entra-e-sai do país hermano, todos os dias.

 Assim, durante muitos anos, enquanto teve forças seu Nico carregou em seus braços de velho a galleta, a graxa, a farinha e tantas outras coisas, dependendo do peso baixar ou subir de valor em relação ao cruzeiro. Nunca fora atacado por um guarda em qualquer das Aduanas, graça, talvez, ao seu aspecto de quem dependia daqueles poucos trocados que conseguia ganhar com aquele trabalho diário. Mais de de um mercadinho naquelas redondezas do Cerro eram abastecidos pelas mercadorias uruguaias trazidas pelo seu Nico.

 Por muito tempo aquele fora seu ganha-pão. Agora não podia mais ajudar a companheira que tinha quase a sua idade, com quem vivia há mais de cinquenta anos. A velha, além de fazer a lides da casa, ainda lavava roupa para fora, isso quando aparecia alguma madame interessada nesse trabalho porque agora as lavanderias faziam isso mais rapidamente.

 Mas, hoje, vai fazer o quê, se já não tem nem mesmo forças para carregar um saco de bolachas ou de graxa contrabandeados do Uruguay para os mercadinhos da redondeza, último recurso para tirar algum ganho para sustentar três pessoas nestes tempos difíceis?

 E agora, que não pode mais trabalhar, quem vai providenciar nas coisas pra dentro de casa? Como vão se alimentar e o menino como vai poder continuar estudando se não vai sobrar para comprar um lápis ou um caderno?

 Dona Noca é quem acaba tomando uma decisão. Chama o menino, entrega-lhe uma saqueta e lhe diz, com o rosto virado para o outro lado, para não denunciar os olhos molhados:

 "Filho, o vô Nico não pode mais trazer as mercadorias de Rio Branco. Agora tu é que vais fazer isso", e saiu para o pátio pela porta dos fundos.

Um comentário:

  1. Uma história engajada que retrata fielmente a situação de extrema penúria que vive aquela gente.

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