segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O QUILERO (I)

 O rio Jaguarão corria tranquilo no mas, no sentido da Mirim, como sempre fizera desde o princípio do mundo. As barrrancas do lado uruguaio estavam a mostra e se podia vê-las de longe pela altura e pela cor da terra preta que se destacava no verde do mato de eucalipto. Nesta época do ano, perto do Natal, a pouca água que o rio recebia não dava para preencher bem o seu leito largo atravessado pela Ponte Mauá.

 De vez em quando, uma canoa areieira aportava no cais em frente à Capitania dos Portos para deixar carga. Barqueiros de lombo brilhando de suor mostravam esforço para palear a areia para cima porque o rio baixo exigia mais força para levantar a pá carregada. Dois homens se revezavam no esvaziamento do barco e compunham um estranho ritual de trabalho, quase um bailado sincronizado, nessa tarefa.

 O sol era de um brilho intenso. Só a necessidade para fazer um vivente sair à rua com um calorão daqueles. Quem não podia ir até a Lagoa, procurava alívio na prainha do lado castelhano, perto da Aduana.

 No Cerro da Pólvora, na parte mais alta da cidade, bem longe dessa margem onde a vida corre um pouco mais devagar, um rancho daqueles de antigamente difere da paisagem das casas de material em volta. É o lugar mais pobre daquela zona. O rancho é um misto de pedra e barro, sem reboco, com remendos de lata de azeite desmanchadas e janelas sem vidraça. O único enfeite da paisagem é uma casuarina e alguns transparentes também já velhos. Ao lado, um limoeiro encascurrado ainda produz alguns frutos pequenos. Um cusco tão feio quanto magro completa o quadro de abandono que a miséria plantou no local.

 Lá dentro, na cozinha enfumaçada, uma negra velha usou a última cevadura para fazer o mate daquele final de manhã. No fogão a lenha, um feijão duro ferve numa panela de ferro e é a única opção para o almoço.

 O velho Nico, olhos meio fechados pela fumaça da cozinha, ainda tem pendurado nos lábios um cigarro apagado. É o último e ele quer fazer durar até que não seja mais possível chupá-lo de tão babado. Suas forças que, no passado, foram tão admiradas por todos os patrões que teve, estão abandonando aquele corpo de quase oito décadas. Maltratado pelo duro trabalho no campo de sol a sol, sem inverno nem verão que o fizesse parar, vai, aos poucos, se entregando. Muito a contragosto por não-fazer-nada, já não tem mais ânimo para continuar lutando.

  Nenhum um dos dois é de muita fala. São mais de fazerem pequenos comentários sobre coisas do dia a dia, mas hoje estiveram longo tempo à beira do fogão onde, de vez em quando jogavam um toco de chilca que crepitava espargindo centelhas. Murmuravam quase, pequenas frases em voz baixa, avaliando o ponto em que a situação havia chegado. Não há mais a quem recorrer e, assim, se nada acontecesse, teriam que viver da caridade pública.

 Ele rememora os velhos tempos de peão campeiro. Vaqueano como ninguém para qualquer lida de campo. Boa mão para doma e castração, foi requisitado por muitos coronéis da região. Quando o último patrão viu que ele não prestava mais para o serviço, dera-lhe uma vaca com cria; um sofá-cama velho que estivera atirado no galpão e ainda se oferecera para levar suas coisas para a cidade. Com isto, Nico se sentiu recompensado por todo aquele tempo que trabalhara para ele. Ficou com muita lástima de sair daquela estância onde passara grande parte de sua vida. A vaca com terneiro ainda conseguiu manter por um tempo no fundo do quintal, indo longe para buscar pasto para alimentá-la. Tomava leite fresquinho, lembrando as madrugadas em que se levantava para ir ao curral para ordenhar as vacas das casas. Depois de vender os animais, ainda conseguiu guardar alguns trocados por um tempo, numa caderneta de poupança da Caixa.

 O rancho fora levantado com a ajuda da mulher e de um cunhado que também lhe havia indicado o lugar que poderia ser ocupado sem pagar nada. Eram apenas duas pequenas peças mais a casinha de madeira no fundo do lote que fazia as vezes de banheiro. (continua)

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